Gloria Pires encarna Nise da Silveira no cinema
SÃO PAULO — Depois de se ver personagem involuntária de inúmeros memes em razão de sua criticada (e econômica) participação como comentarista na transmissão do Oscar deste ano, Gloria Pires está de volta em outro papel, o de atriz, porto mais que seguro. No filme “Nise — O coração da loucura”, com estreia prevista para o dia 21, ela interpreta a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), médica alagoana pioneira no uso da terapia ocupacional para tratamento de esquizofrenia e outras doenças mentais. Dirigido por Roberto Berliner, o filme se concentra no período em que Nise sai da prisão, onde foi parar por porte ilegal de literatura comunista nos anos 1930, e assume o Setor de Terapia Ocupacional do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio. Ao se recusar a empregar tratamentos como eletrochoque e lobotomia e defender o uso de arte e outras formas afins, Nise inicia uma revolução no meio. E é esta liberdade de pensamento, “esse ímpeto’’, que inspira a atriz. Na entrevista a seguir, Gloria opina sobre o viés feminista da personagem, o componente político que existe no filme e os efeitos colaterais do episódio do Oscar.
Você já interpretou personagens reais, como dona Lindu, mãe do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em “Lula: filho do Brasil” (2010), e Lota Macedo Soares, em “Flores raras” (2013). Como Nise da Silveira se encaixa nessa sequência?
Por algum motivo, essas heroínas, essas mulheres icônicas, me encontraram mais do que eu as encontrei. Acabei sendo surpreendida por elas. Mas a Nise é um pouco diferente. A personalidade dela, com essa maneira de viver, de ser livre para pensar como quiser, é uma coisa que nos aproxima muito. Essa maneira transgressora. Ela não seguia uma cartilha. Com todo o conhecimento, o pensamento dela era uma colcha de retalhos. Pegava uma coisa aqui, outra ali. Fazia sentido para ela.
De que maneira você se identifica com essas personagens? Há uma verve feminista nelas?
De alguma forma, cada uma em seu ambiente, elas revolucionaram. Eu me identifico pela inspiração que elas, com suas histórias, me trazem. Sendo pequena ou grande essa revolução, esse ímpeto, esse saber ancestral, não é uma coisa estudada ou preparada. É intuitiva, que faz com que elas saibam que esse é o caminho a ser seguido. Até porque ser feminista não quer dizer que você não possa ter uma vida familiar ou estar no seu papel tradicional de esposa e mãe. Isso não desmerece nenhum lado do feminismo. O feminismo é mais do que um padrão a seguir, independe de que papéis você vai ter na vida íntima e pessoal. Essa liberdade é importante. Mesmo tendo sido uma mulher que rompeu essas barreiras de entendimento da doença, de tratamento, de resgate das consciências, Nise era uma esposa, que tinha seu marido, era recatada...
Como você definiria a importância de Nise da Silveira para além das conquistas no tratamento psiquiátrico?
Acho que tem a ver com a maneira como ela encarou as adversidades e com essa disponibilidade do olhar para com o outro. Algo que certamente foi reforçado pela experiência da prisão, onde ela conviveu com a tortura, embora não exista registro de que ela tenha sido torturada. Ela estava numa cela e cuidou de todas as pessoas. Uma experiência que talvez não tenha vivido na própria pele, mas que identificou com os tratamentos psiquiátricos mais modernos da época: eletrochoque, choque insulínico e lobotomia.
Você fala com desenvoltura sobre a Nise. De que maneira se preparou para fazer a personagem?
A preparação mesmo, a parte mais intensa, foi tomando contato com o pensamento dela. Isso se deu pelos livros, pelo filme do Leon Hirszman, “Imagens do inconsciente” (1986), e pelo curta de animação “Estrela de oito pontas”, de Marcos Magalhães e Fernando Diniz. Também fiz uma dieta para ficar bem magrinha, mas não consegui (risos). E tentei fazer sotaque, mas o Roberto (Berliner) desistiu. A Nise tinha uma maneira de falar e de colocar as coisas que, mesmo sem o sotaque, eu tentei manter. Mesmo quando ela falava uma coisa disparatada tinha um modo peculiar.
Há um componente político muito forte no filme, não só pela posição dela, mas pela maneira como confronta os colegas médicos e também pela relação com personagens importantes da época, como o crítico Mario Pedrosa, personagem de Charles Fricks.
O filme é atemporal. O que traz de informação cabia naquela época e cabe ainda hoje. Porque, mais do que partidos políticos, trata da política que se tem na vida. De que lado você vai trabalhar, o que te interessa. Ela era uma servidora pública e levava a sério o trabalho, a obrigação de trabalhar para o bem-estar do povo brasileiro. É uma situação que a gente vive diariamente. Qual o seu interesse na vida que você leva e do jeito que você leva? A quem você está servindo?
O episódio do Oscar, quando você foi muito criticada por sua participação na transmissão da Globo, produziu algum efeito colateral?
Hoje, existe essa necessidade de pertencimento. Então, uma coisa que alguém fala no Twitter, no Facebook ou em outras redes sociais ganha uma dimensão enorme, estando certo ou errado, por pessoas que não sabem nem sobre o que se está falando. Quando eu disse que não tinha assistido (a um filme), subentendeu-se que eu não tinha visto nada. E não é verdade. E nem eu estava ali como comentarista do Oscar. Fui convidada como atriz para dar opinião sobre o que eu quisesse. Então, quando alguém pergunta se uma música vai ganhar, realmente eu não sei opinar.
Mas você encarou com naturalidade.
Fiquei assustada, porque as pessoas talvez esperassem alguma coisa. Não posso inventar uma história. Não estava ali para ocupar o lugar do José Wilker. Não seria louca de fazer isso e não fui convidada para isso. E se tivesse, não teria aceitado. Então: prêmio de som? Eu não sei discernir. Mas sei falar do trabalho dos atores, do roteiro, do figurino. Acabou sendo ótimo, porque virou um case na internet. Uma coisa que podia ser catastrófica e reverteu a meu favor. Porque não estava inventando um personagem, estava ali com pessoas que gosto.
Com um look bem descontraído, com um blazer e uma calça jeans, Gloria desfilou jovialidade e esbanjou sorriso para os fotógrafos presentes no cinema da R. Frei Caneca, em São Paulo.
Com um look bem descontraído, com um blazer e uma calça jeans, Gloria desfilou jovialidade e esbanjou sorriso para os fotógrafos presentes no cinema da R. Frei Caneca, em São Paulo.
Fonte:
Fotos: Thiago Duran
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