A Glória dos dias - Revista Troppo + Mulher


É impossível passar incólume por Glória Pires, uma atriz que transforma seu entorno. No ar, na novela “Éramos Seis”, na pele da matriarca Lola, Glória dá um show de intepretação – e nem podia ser diferente, afinal estamos falando de uma das maiores e mais amadas atrizes do Brasil, cuja carreira começou quando ela era ainda menina, sob as bênçãos do pai, o ator Antônio Carlos Pires e da mãe, Elza Pires. Nesta entrevista exclusiva à Troppo + Mulher, Glória rememorou sua casa, as dificuldades encontradas pelos pais (e de como eram pessoas extremamente positivas); falou sobre Lola, sobre maternidade – tanto a ficcional quanto à dela própria. Revelou que aprendeu tricô para a novela (e que está completamente viciada), além de ter negado que a filha, Cleo, vítima recente de ataques na internet, precisasse de sua defesa. Encontramos um tempinho ainda para falar do Brasil e do cenário político atual, como vocês conferem a partir de agora.

Troppo + Mulher: Algumas décadas separam você de sua personagem, Lola. Mas, atemporalmente, diz-se que “mãe são todas iguais”. O que você e Lola têm em comum, Gloria? E o que você faria diferente, em relação aos seus filhos? Quais sacrifícios, por exemplo, Lola faz/fez e que você não faria? 

Gloria Pires: Não me acho parecida com a Lola. Tenho um pensamento de me preocupar com o futuro, que não é uma coisa só minha. Todo mundo que tem um filho se preocupa com o futuro, o futuro que está esperando para aquela pessoa. Mas acho que só nisso a semelhança. São vidas tão distintas, tão radicalmente diferentes, que é difícil haver alguma semelhança. Vejo que quase toda mãe é amorosa, procura ser compreensiva. Não só das mães. A gente já vê um movimento muito bonito da presença paterna na criação dos filhos – o meu pai participava muito da nossa criação. Orlando é um pai super presente. Embora viaje muito, está sempre presente, sempre em contato, participando de tudo. Eu acho que o maior desafio dos pais é superar a dureza que é a rotina, o dia a dia. A luta pela sobrevivência, para chegar de volta em casa. Essa rotina eu acho que é a maior inimiga da tranquilidade dos pais na relação com os filhos. Muitas vezes os pais descontam nos filhos, que é o que a gente via no Júlio: esse peso. Qualquer dificuldade dentro de casa é demais para a pessoa que já passou um dia de problemas no trabalho. Vejo que essa é a maior dificuldade da amorosidade que eu acredito que todo pai, toda mãe tenha. Essa amorosidade acaba sendo vencida pela dureza da rotina fora de casa.

T+M: Você vive um personagem cuja boa parte do público tem uma enorme afeição, até porque o livro foi um enorme sucesso, à época, e porque a própria obra foi adaptada algumas vezes para a TV. Você, algum momento, buscou referências em algumas dessas versões? Se não, onde você buscou inspiração para compor a Lola? 

GP: Não assisti às outras versões. Eu li o livro e ele é bem mais triste, bem mais pesado do que a novela. A novela tem um lado de humor, um lado de romance… E pra mim é uma emoção, porque é uma novela icônica. A minha Lola é uma mãe, que não é a mãe boazinha, mas é uma mãe amorosa. Uma mãe que procura compreender e ajudar os seus filhos. Foi também uma esposa dedicada, que honrou muito esse casamento, essa casa. A Lola está dentro desse ambiente, onde todos são envolvidos pelo amor, pelo prazer de estarem juntos, mas driblando as dificuldades todas da vida. Foi muito importante ter lido o livro. Muito importante mesmo. Porque o livro tem todo o peso dessa época. Sobre inspiração, eu sempre me lembro da minha avó, na verdade. Nascida no fim do século XIX, que veio para o Brasil semianalfabeta. Lembro dela falando, por exemplo, das dificuldades para se adquirir um tecido. As pessoas tinham menos roupa, foi a industrialização que trouxe esse conforto todo. É interessante pensar que, historicamente, aquilo tem tão pouco tempo e, ao mesmo tempo, está tão distante. E é interessante também falar da Lola com o recorte da época. Principalmente porque tem coisas que não mudam. Hoje, as pessoas estão sabendo o que acontece no mundo. Naquela época não era assim, as pessoas ficavam à parte do que acontecia e o que acontecia levava muito tempo para ser sabido. Uma carta demorava para chegar, um livro que era lançado, até chegar no Brasil... A vida era muito complicada.

T+M: Você, na vida real, também é mãe de quatro filhos. O que você empresta de si para a Lola, Gloria? E Lola já “emprestou” algo dela pra você? 

GP: Eu e minha família também vivemos dificuldades porque meu pai era ator. E a vida de artista sempre foi muito inconstante, muito incerta. Mas meus pais eram pessoas muito positivas. Eles tinham uma maneira de encarar a vida com positividade, com a certeza de que a coisa ia dar certo. Acho que isso é uma qualidade das pessoas que são positivas. Alguma coisa dá uma certeza de que vai rolar. É só insistir que vai dar certo. Além disso, tenho uma ligação pessoal com a costura porque minha mãe costurava coisas para mim e para minha irmã. Sempre que ela estava na máquina, eu estava com ela. Para a novela, eu aprendi a fazer tricô de verdade. É muito bom, já estou viciada.

T+M: Falando nisso, você sempre imaginou uma família grande? 

GP: Sim, sempre imaginei. Adoro a casa cheia, quando estamos todos juntos. Sempre encarei a minha família como um organismo vivo, com a participação de todos. Como falei outro dia, “uma obra em construção”. Um dia depois do outro, com as dificuldades, as novidades, as notícias maravilhosas... Tudo faz parte de um processo de construção pessoal de cada um, dentro dessa família.Então, quando decidi seguir a mesma carreira do meu pai, ele e minha mãe me apoiaram muito nas minhas escolhas. Nas inseguranças, nas decepções, nas vitórias.

T+M: Você é filha do saudoso Antônio Carlos Pires, um artista sensível e pioneiro no rádio brasileiro. O que ele compartilhou com você sobre a carreira artística, Glória? Tendo duas filhas atrizes, você costuma compartilhar com elas também? Eles pedem sua ajuda, profissionalmente falando? 

GP: Eu era muito tímida, não imaginava que fosse ser atriz. Mas eu amava ver meu pai trabalhando. Ele era comediante, trabalhava caracterizado e isso me chamava a atenção. Então, quando decidi seguir a mesma carreira do meu pai, ele e minha mãe me apoiaram muito nas minhas escolhas. Nas inseguranças, nas decepções, nas vitórias. No caso das minhas filhas, elas escolheram. Cleo, por exemplo, dizia que não queria ser atriz quando era criança. Até que na adolescência mudou de ideia. A Antonia sempre quis, diferentemente da Cleo. Falava sozinha, criava histórias. Foi uma escolha natural.

T+M: Você é muito reservada, discreta, postura rara em tempos de exposição e hiperconectividade. Como lidas com o assédio do público, da imprensa e redes sociais? Te incomoda essa “devassidão da intimidade”? Tens medo das fake news, boatarias e críticas? 

GP: Eu sou totalmente turista na internet. Não vivo esse mundo. Eu uso porque é uma ferramenta importante hoje, mas não faz parte do meu dia a dia.

T+M: Sei que foi um assunto sobre o qual você falou bastante já, mas, neste tocante, você defendeu recentemente a Cleo de ataques na internet. Como você lida com os chamados “haters” na sua própria rede social?

GP: Não defendi a Cleo porque não acho que ela precisa ser defendida. Ela não fez nada de errado e está vivendo sua vida honestamente. Sobre os haters, não me importo com a opinião deles. Vivo minha vida e quero que meus filhos vivam a vida deles sem se preocupar com esse tipo de coisa. Coisas boas acontecem o tempo todo e é nelas que devemos focar nossa atenção.

“A gente já viu na história períodos longos de escuridão, mas eu quero crer que essa escuridão que a gente está vivendo não vai durar para sempre”


T+M: Voltando à Lola, a novela acaba de entrar em uma nova fase, com o falecimento de Júlio e caberá à matriarca conduzir a família, em uma época em que o protagonismo feminino não era bem visto. De lá para cá, muita coisa mudou, naturalmente, mas ainda temos de conviver com machismo, salários desiguais... Na sua carreira, considerando que você começou muito menina, você enfrentou algo do tipo, Glória? Assédio, por exemplo? 

GP: Enfrentei, sim. Acho que poucas mulheres, e até homens, não passaram por isso. Porque o assédio é uma coisa tão generalizada e até pouco tempo, tão comum... Agora que, com esse movimento feminista ganhando força, isso realmente virou um assunto de pauta. Eu não conheço ninguém que não tenha sofrido qualquer tipo de abuso, moral ou sexual. Na vida, quero dizer, pessoas que nem são artistas. Infelizmente, é uma realidade muito comum.

T+M: Pegando novamente o gancho, a gente está vivendo à sombra de notícias muito ruins para a cultura – numa semana em que se anunciou que a exclusão de algumas profissões do MEI [a entrevista ocorreu no dia da divulgação da resolução, que foi revogada horas depois]. Qual sua visão do cenário político e cultural do brasileiro? A Arte vai encontrar fôlego para lutar contra esses desmontes? 

GP: Eu quero acreditar... Quando eu fiz o filme “Nise – O Coração da Loucura”, tive bastante contato com a obra de Carl Jung. Ele dizia que a mente é um organismo vivo que sempre vai procurar uma maneira de se equilibrar e se regenerar. E é isso que eu penso. Acho que a arte não é uma coisa elitista. É inerente ao ser humano. Você pode dar o nome que for, mas a expressão só se dá através de alguma manifestação artística. Então, eu acho que de alguma forma isso vai sobreviver. Vai encontrar meios. Até porque a escuridão não dura para sempre. A gente já viu na história períodos longos de escuridão, mas eu quero crer que essa escuridão que a gente está vivendo não vai durar para sempre. A gente tem que se unir e incentivar as manifestações artísticas e culturais sempre.

T+M: Por fim, Glória, quando você precisa “desplugar”, qual o seu antídoto às pressões e correria da vida? 

GP: Música. Música sempre é uma companhia perfeita para mim. Se eu estiver ouvindo música no meio do mato, numa cachoeira, numa praia, um canto quieto qualquer, eu estou felicíssima.

Fonte:
oliberal
Foto: Raquel Cunha - Rede Globo

Comentários