Nise da Silveira ganha bela ficção com Gloria Pires

Ela mudou a psiquiatria tradicional, lembra ofilme de Roberto Berliner;
Luiz Carlos Merten
Reprodução: Estadão

‘Nise’. Glória Pires vive o papel principal: ótima interpretação

RIO - Havia gente pelo ladrão, com a sala do Odeon – Centro Cultural Luiz Severiano Ribeiro lotada para assistir a Nise – O Coração da Loucura. O longa de Roberto Berliner atraiu uma multidão que queria ver e debater o filme sobre a dra. Nise da Silveira. Pouquíssima gente abandonou o Cine-encontro. Berliner contou como o projeto irrompeu em sua vida há 13 anos, proposto pelos irmãos Horta: Bernardo, que escreveu um livro sobre ela, e André, o fotógrafo. A filmagem foi há quatro anos – Glória Pires contou como fez depois as comédias Linda de Morrer e Pequeno Dicionário Amoroso 2. No final de Nise, há uma entrevista com a própria biografada. Quem fala com ela, detrás da câmera, é Leon Hirszman, que também fez o documentário Imagens do Inconsciente, uma trilogia sobre a arte produzida pelos ‘clientes’ da dra. Nise.
Na abertura do filme, Glória chega ao Central Nacional de Psiquiatria, no Engenho de Dentro. Há um imenso portão de ferro. Ela bate, ninguém atende. Bate mais, quase arromba a porta de ferro. A situação é metafórica. Dra. Nise arrombou a psiquiatria tradicional. Numa época em que lobotomia e choques elétricos eram considerados métodos científicos, ela propôs a grande novidade. Simplesmente olhar e escutar o outro. Lutou para que o ‘louco’ deixasse de ser estigmatizado e fosse visto como gente. Berliner, autor de documentários como A Pessoa É para o Que Nasce e A Farra do Circo, não inventou nada. O filme é cuidado. A experiência do diretor como documentarista alimenta sua ficção. E Glória, dá para comparar, não imita a dra. Nise. Vive-a com intensidade sem fazer esquecer a grande atriz que é. Já temos candidata ao Redentor de atriz.
Na terça à noite, no próprio Odeon, houve a exibição de Maravilhoso Boccaccio. Os irmãos Paolo e Vittorio Taviani fizeram filmes viscerais nos anos 1960, 70 e 80. Obras como Sob o Signo de Escorpião, Allonsanfan, Pai Patrão, A Noite de São Lourenço, Kaos. Na passada dos anos 1990 para os 2000, pareceram perder-se. Reinventaram-se através de Shakespeare – César Deve Morrer. Há 40 e tantos anos, Pier Paolo Pasolini iniciou com Decameron sua trilogia da vida, que prosseguiu com Os Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites. Todos tinham cenas de genitália, sexo (quase) explícito. Paolo e Vittorio vão por outra via. No filme deles, a peste consome Florença no século 14. Dez jovens abandonam a cidade e se isolam para não morrer. Fazem o voto de castidade e contam-se histórias para passar o tempo.
O filme narra cinco das cem histórias do Decamerão. São histórias de vida, de renascimento, de superação. O filme é lindo. Será distribuído pela Califórnia.
Dois documentários exibidos na Première Brasil dialogaram de forma muito interessante. Cordilheiras no Mar – A Fúria do Fogo Bárbaro, de Geneton Moraes Neto, investiga o pensamento político de Glauber Rocha e seu apoio ao projeto de abertura dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, a quem chama de ‘gênio da raça’. O filme é operístico, épico – glauberiano. Mário Wallace Simonsen – Entre a Memória e a História, de Ricardo Pinto e Silva, com os mesmos entrevistados (alguns, pelo menos), mostra a destruição do empresário pela aliança civil-militar que barbarizou o Brasil durante décadas. O grupo de militares que Glauber salvaguarda (a linhagem de Castelo Branco a Geisel) serve aos interesses do capital, não do Brasil. Os militares não seriam brasileiros, se não fossem corruptos, acusa Saulo Ramos. São dois filmes que vão dar o que falar. E têm tudo a ver com o que ocorre hoje no País

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