O desafio de Gloria Pires
Com quatro décadas de carreira, a atriz encara sua primeira personagem homossexual no novo filme de Bruno Barreto, "Flores Raras", que chega às telas como uma aposta brasileira para o Oscar de 2014
Ana Weiss
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Com o mesmo sorriso entre covinhas com que abria a novela “A Pequena Órfã”, aos 5 anos, Gloria Pires cumprimentou cada um dos funcionários do hotel por quem passou durante a chegada para o lançamento do filme “Flores Raras”, que estreia na próxima semana. Vestindo uma camisa polo bem ajambrada na calça jeans justa, a atriz encarou com a mesma simpatia as entrevistas, fotografias e filmagens, quase sem maquiagem e com uma disposição de fazer inveja. Disposição que é, aliás, um dos poucos pontos em comum com a personagem que encarna no longa-metragem de Bruno Barreto, aposta brasileira para o Oscar de 2014, sobre o romance entre a poetisa norte-americana Elizabeth Bishop e a arquiteta carioca nascida em Paris Lota de Macedo Soares. Gloria faz a brasileira Lota, herdeira abastada e desgarrada do jornalista José Eduardo de Macedo Soares, papel pelo qual a atriz global – que no próximo mês completa 50 anos – mais esperou na vida. Literalmente. “Foram quase 17 anos”, conta com o brilho nos olhos, de quem, com mais de 40 anos de carreira, 20 telenovelas e grandes sucessos de público no cinema, acaba de realizar um grande sonho.
ESPERA
A intérprete aguardou quase 17 anos para dar vida à Lota de
Macedo Soares, a arquiteta que desenhou o Parque do Flamengo
Em 1997, assim que comprou os direitos do livro “Flores Raras e Banalíssimas” (Rocco), de Carmen Lucia de Oliveira, Lucy Barreto chamou a atriz para viver a mulher poderosa, impulsiva, autora do importante projeto do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, passagem recontada com maestria no filme. A demora, conta o diretor, deveu-se à dificuldade em convencer patrocinadores a encampar uma história de amor homoafetiva. “O brasileiro é muito moralista”, diz Bruno Barreto, o segundo a ser lembrado por Lucy, sua mãe, para participar do projeto. Convite que, a propósito, não aceitou de imediato. Somente dez anos depois, graças à influência da ex- mulher, Amy Irving, e de seu interesse pela peça de teatro “Um Porto para Elizabeth Bishop”, de Marta Góes, que o diretor decidiu abraçar o projeto. “Em 2004, Marta e Amy visitaram a casa em que as duas viveram em Samambaia, perto de Petrópolis, e fomos também a Ouro Preto, em Minas Gerais, onde Elizabeth viveu em um momento posterior da vida. Dormimos na cama que era da poetisa. Nos apaixonamos”, recorda. “Aquela noite disse à Amy: ‘Só não me chame de Lota’”, brinca.
Fã confesso de Gloria, “a única para quem eu pedi autógrafo na vida”, Barreto admite que era quase um problema ter a atriz carioca no time de antemão, pois o papel de Elizabeth não poderia ficar à sombra de Lota. Para fortalecer sua presença, chamou a atriz australiana Miranda Otto, que, sem falar português, desembarcou uma semana antes do início das filmagens para incorporar a escritora com o contraste e o estranhamento que o dueto com Gloria precisaria. “As duas tiveram uma química absurda. Chegou um momento que percebi que elas eram as donas dos papéis e tudo que eu podia fazer era escutá-las.” Uma das cenas que revela a relação estreita de Lota e seu grande amigo Carlos Lacerda foi, aliás, proposta por Gloria.
POEMA
Miranda Otto e Gloria Pires na cena em que Elizabeth recita
versos eróticos para a amante brasileira: elegância
A obra no Aterro do Flamengo, na ficção, é uma ideia da arquiteta sem curso universitário. “De amigos e pessoas que conviveram com os dois, ouvimos que ela era o único ser que o Lacerda obedecia”, diz a atriz. As fontes de pesquisa não foram muitas. “Lota não gostava de fotografia e não existe muito material a seu respeito.” O registro biográfico rarefeito, porém, parece ter contribuído para a criação da personagem.
A atriz juntou aos recursos de seu repertório (a voz de comando usada em Maria Moura, um de seus grandes papéis) a imagem de mulheres de sua própria convivência – as quais prefere não nomear, pois o preconceito ainda obriga muitas delas a viverem suas escolhas com discrição.
"Gloria Pires é um fenômeno.
Ela é um mistério para mim"
Bruno Barreto, diretor do filme
Não era o caso de Lota. Em plenos anos 1950, a paisagista usava roupas masculinas, falava palavrão e não escondia de ninguém suas amantes, nem delas próprias, que muitas vezes conviviam em um triângulo amoroso, como mostra o filme que tem uma casa desenhada por Oscar Niemeyer em Petrópolis como cenário. Com pesquisa de época detalhista, direção de arte impecável e recursos gráficos de primeiríssima linha, o filme de R$ 13 milhões estreia na primeira semana de novembro nos EUA. “Justamente para que possamos entrar nos calendários dos maiores prêmios”, diz Paula Barreto, outro braço do clã na produção. A dupla de intérpretes são apostas para o Oscar. “Esses anos de espera também me alimentaram de experiências de vida, fundamentais na construção do papel. Há 17 anos não faria a mesma Lota”, diz Gloria, que se prepara para viver nas telas a psiquiatra Nise da Silveira. “Lota é um sonho e um desafio dos maiores da vida de qualquer atriz”.
Fotos: Cecilia Acioli/FolhaPress; Lisa Graham / Divulgação
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N° Edição: 2282 | 09.Ago.13 - 20:40 |
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